O goleiro palmeirense Nivaldo faz uma defesa contra o São Paulo. Foto: A Gazeta Esportiva.

Uma derrota que valeu dois pontos

O São Paulo não conseguiu superar o Palmeiras, que jogou mais da metade do jogo com um atleta a menos, mas um erro do técnico palmeirense custou os pontos da vitória, que foram decisivos para o Tricolor conquistar um título.

Alexandre Giesbrecht
Jogos do São Paulo
8 min readApr 19, 2020

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Faltavam dois minutos para o fim do tempo regulamentar, e o São Paulo atacava o Palmeiras como podia, em busca do empate, quando o técnico palmeirense Aymoré Moreira sacou o atacante Ney, substituindo-o por Fernando. Os jornalistas presentes ao Pacaembu anotaram a substituição em seus blocos de notas, para poderem colocá-la em seus relatos, no dia seguinte. Aparentemente, nenhum deles percebeu de imediato que aquele foi o momento decisivo do jogo.

Substituições ainda eram uma relativa novidade em 1956. Havia quem fosse contra, como o jornalista Thomaz Mazzoni, d’A Gazeta Esportiva, que em 1954 rechaçava a ideia: “Evite-se que os reservas margeiem o gramado, quando são os primeiros a invadir o campo por ocasião dos incidentes, e, ademais, havendo substituições, o jogo paralisa a cada novo elemento que entra.” No Brasil, elas costumavam ser adotadas em amistosos.

Quando o Torneio Rio–São Paulo, disputado inicialmente em 1933 e depois iniciado e interrompido antes da conclusão em 1934 e 1940, voltou a ser disputado, em 1950, trouxe em seu regulamento uma novidade. O terceiro parágrafo do artigo 7 dizia: “Cada associação poderá substituir, durante cada jogo, até três atletas, sendo vedada a substituição de atleta expulso pelo árbitro ou a volta de atleta já substituído.” Mais tarde, seria permitida uma substituição por time em cada jogo nos Campeonatos Paulistas de 1960 e 1961, voltando depois a regra anterior, que permitia apenas a substituição de um goleiro contundido. Em 1968, finalmente o Paulistão passou a permitir duas substituições, como seria o padrão até 1994, quando as três substituições de hoje foram introduzidas no torneio.

O Rio–São Paulo deveria ter sido disputado normalmente em 1956, porém os clubes cariocas preferiram excursões pelo Exterior. O Estadão questionou a decisão: “Talvez tenham com isso grandes vantagens financeiras, o que, todavia, duvidamos, desde que se sabe, não terem sido, até hoje, das mais compensadoras as excursões ao estrangeiro, ao passo que o Torneio Rio–São Paulo vinha se constituindo numa fonte segura de recuperação financeira para as principais agremiações de São Paulo e do Rio.”

Assim, foi promovido um torneio envolvendo os cinco grandes clubes paulistas e três estrangeiros (Boca Juniors e Newell’s Old Boys, da Argentina, e Nacional, do Uruguai), e a ele foi dado o nome de Roberto Gomes Pedroza, o mesmo nome que o Rio–São Paulo tinha desde 1954, homenagem ao presidente da Federação Paulista de Futebol (FPF) que tinha morrido naquele ano, em um acidente doméstico. Esse torneio foi vencido pelo Santos, que derrotou o Newell’s na final.

Logo em seguida, a FPF promoveu um segundo torneio, com o mesmo nome, mas envolvendo apenas os cinco grandes paulistas, que jogariam entre si em um turno. Foi mantido o mesmo regulamento do Rio–São Paulo, substituições incluídas, agora tratadas no quinto parágrafo do artigo 10, com o mesmo texto publicado em 1949. O São Paulo estreou nesse novo torneio com um empate por 2 a 2 com o Corinthians e uma vitória por 2 a 0 sobre a Portuguesa. Foi então que ocorreu o Choque-Rei com que abri este texto. O Palmeiras, que perdera para Santos e Corinthians já não tinha praticamente nenhuma chance de conquistar o titulo, enquanto ao São Paulo uma vitória daria condições de decidi-lo com o Santos, na última rodada.

“Mais uma vez, jaquetas tricolores e esmeraldinas estarão riscando o gramado de Pacaembu, sob a assistência de duas torcidas numerosas, que deverão comparecer em massa ao próprio da Municipalidade, a fim de estimular suas equipes prediletas, embora São Paulo e Palmeiras não estejam no momento numa fase das mais auspiciosas”, escreveu A Gazeta Esportiva. “Realizando um confronto entre os times representativos do Tricolor e do Alviverde, vemos que os são-paulinos, pelo retrospecto e pela atual situação de sua equipe, ostentam as condições de favoritos, embora não esteja absolutamente fora de cogitações um triunfo esmeraldino.”

Considerando que o Estadão havia escrito que o Torneio Roberto Gomes Pedroza vinha “malogrando tecnicamente”, o mesmo jornal demonstraria surpresa com a quantidade de torcedores presente ao Pacaembu para o Choque-Rei, “[público] muito mais numeroso do que se poderia esperar”. O São Paulo estava desfalcado de três de seus principais jogadores, convocados para a seleção brasileira que excursionava pela Europa naquele momento: De Sordi, Gino Orlando e Canhoteiro. Maurinho tinha sido convocado, mas acabou cortado por lesão, sendo Gino chamado para substituí-lo, e estava à disposição do técnico Vicente Feola. O Palmeiras não tinha desfalques.

O jogo começou morno, com os adversários se estudando. Quando a intensidade aumentou, o Palmeiras abriu o placar, aos 25 minutos: Alfredo cobrou uma falta próximo da área, que desviou na barreira, sobrando para Ivan, que chutou forte. A bola bateu no travessão e entrou. Menos de dez minutos depois, Lanzoninho partiu com a bola para cima de Valdemar Carabina, que tentou desarmá-lo. O defensor palmeirense tocou na bola, sem atingir o são-paulino, e a bola fugiu do controle de ambos, matando a jogada. O árbitro inglês Frederick Charles Williams apitou falta. Até aí, nenhum problema; não seria a primeira nem a última falta marcada que não existiu. O problema é que Mister Williams expulsou Valdemar. Em seu relatório, ele apontou “jogo violento” como motivo da expulsão.

Todos os jornais da época consultados (A Gazeta Esportiva, Folha da Manhã, Folha da Noite e O Estado de S. Paulo) foram unânimes ao afirmar que a expulsão fora exagerada. Aliás, mesmo os jogadores do São Paulo pensavam assim, como definiu A Gazeta Esportiva: “Pesando devidamente o fato que resultou na expulsão, [os jogadores são-paulinos] reconheceram o exagero do árbitro.” Com a desvantagem numérica, Aymoré trocou o atacante Colombo pelo zagueiro Joel, a fim de recompor seu esquema defensivo, e isso talvez tenha ajudado a impedir que o São Paulo chegasse ao empate. Mas o não que o Tricolor passasse a dominar as ações, com o Palmeiras sem conseguir incomodar o gol de Bonelli. Na outra meta, Nivaldo trabalhou bastante para segurar o zero no placar.

O árbitro deu cinco minutos de acréscimos ao fim do primeiro tempo, além de outros cinco minutos “por engano”, de acordo com o relatório do representante da FPF. Na volta para o segundo tempo, um dirigente palmeirense, Mário Beni, tentou entrar no campo para pressionar esse representante, mas foi impedido pela polícia. Após ser comunicado sobre o fato pelos policiais, o representante, cujo nome não foi publicado, autorizou a entrada de Beni e ordenou que Williams retardasse o reinício de jogo até um sinal seu. Beni não apareceu mais.

O panorama não mudou muito no segundo tempo. O São Paulo parecia cada vez mais nervoso, na medida em que não transformava seus esforços em gols. O adversário, por sua vez, apelava para quedas constantes de seus jogadores, para tentar gastar o tempo. Aos dezoito minutos, Aymoré mexeu novamente em seu time, já que o goleiro Nivaldo tinha sido atingido involuntariamente no maxilar por Maurinho. Em seu lugar, entrou Laércio. Quase vinte minutos depois, o técnico palmeirense mexeu novamente na equipe, colocando Juarez no lugar de Nestor. No lado tricolor, Feola tinha substituído Dino Sani por Roberto no fim do primeiro tempo e, depois, Clélio por Melloni e Zezinho por Paraíba. Estas deveriam ter sido todas as substituições do jogo.

Talvez se confundindo com a substituição de seu goleiro, Aymoré ainda colocou Fernando no lugar de Ney, aos 43 minutos. Quatro minutos depois, já nos acréscimos, ele recebeu um lançamento, invadiu a área, livrou-se de Mauro e Melloni e chutou sem chances para Bonelli. O jogo terminou com a vitória palmeirense por 2 a 0. Foi necessária proteção policial para que o árbitro deixasse o campo.

A diretoria palmeirense enviou à FPF um protesto contra a arbitragem de Williams, que, assim como Harry Davies, estava sendo testado pela entidade para possível contratação de ambos para atuar no Campeonato Paulista, que começaria em julho: “Deixando de ser, como devia, um condutor à altura da contenda, atrabilhoado [sic], de atitudes desprimorosas com nossos atletas, com excessos na imposição de sua vontade, não pode esse árbitro continuar atuando [em] jogos de nossa federação. Ademais, faltou ele ao mais comezinho princípio de respeito às normas já estabelecidas pelo departamento de árbitros, que é a de advertir antes de eliminar o atleta do campo.”

A resposta de Jaime Bortman, responsável pelo departamento de árbitros, foi de que, apesar do erro do inglês, os dirigentes palmeirenses deveriam colaborar, “sem perturbar mais as coisas”. Bortman também afirmou que ainda não havia sido tomada uma decisão sobre a contratação dos árbitros ingleses — eles acabariam atuando no Estadual.

Essa não foi, entretanto, a única repercussão sobre o Choque-Rei na sede da FPF, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Não consegui determinar se partiu do São Paulo ou da Federação, mas o fato é que no dia seguinte já estava circulando nos corredores da entidade a notícia de que o Palmeiras perderia os pontos da vitória, por causa da quarta substituição, que não estava prevista no regulamento. Poucos dias depois, o departamento técnico da FPF oficializou a transferência dos pontos da partida ao São Paulo. A decisão teve anuência do departamento jurídico da entidade.

A Gazeta Esportiva teceu críticas ao representante da FPF no clássico, levantando uma improvável teoria da conspiração: “O que está a reclamar uma citação especial, no entanto, é o procedimento do representante da Federação Paulista de Futebol. Afinal de contas, é uma autoridade que permanece em campo e, como tal, deveria impedir que a quarta substituição determinada por Aymoré Moreira se positivasse. Agindo como agiu, dá margem, inclusive, a suposições pouco recomendáveis, de vez que endossou um erro claro e visível.”

Oscar Malzoni, diretor de Futebol do Palmeiras, entretanto, não se esquivou da culpa de seu clube: “O Palmeiras infringiu o regulamento e deve arcar com as consequências. Sem que tenhamos aqui o propósito de defender o técnico Aymoré Moreira, devemos mencionar que, da sua parte, deve ter havido algum engano. Na fase internacional do torneio, eram permitidas quatro substituições, número reduzido para três na fase nacional. Além disso, naturalmente emocionado com a vitória que se desenhava contra um adversário de categoria como o São Paulo, nosso preparador cometeu esse erro.”

Não encontrei o regulamento do Roberto Gomes Pedroza internacional (que muitas vezes é referido como “fase internacional”), mas, de fato, eram permitidas mais do que três substituições. Não apenas quatro, já que o Boca Juniors fizera nada menos que seis na partida em que foi goleado pelo São Paulo por 4 a 0, em 11 de março. Entretanto, houve uma reunião para definir o regulamento antes do torneio doméstico, e havia dois dirigentes palmeirenses nela.

Os pontos dados ao São Paulo fizeram a diferença na última rodada, quando o Tricolor venceu o Santos por 5 a 3 e ficou com o título. Apesar do nome, esse título não é obviamente computado como um Rio–São Paulo. O resultado da partida também não foi alterado, permanecendo como vitória palmeirense por 2 a 0. Essa não foi a última vez que o São Paulo ficou com os pontos de uma derrota num Choque-Rei: em 1984, o Tricolor perdeu para o rival por 2 a 1, mas, devido ao caso de doping do palmeirense Mário Sérgio, obteve os pontos da partida.

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Autor de três livros sobre a história do São Paulo. Pai, filho, neto e bisneto de são-paulinos.