Visita de Ignác Amsel à redação da Folha da Manhã, em 1939. Foto: Folha da Manhã.

O segundo técnico húngaro do São Paulo

De conhecido goleiro na Hungria a técnico do São Paulo e técnico das categorias de base do mesmo clube, a trajetória futebolística de Ignác Amsel é curiosa — e misteriosa.

Alexandre Giesbrecht
11 min readMay 3, 2018

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Por Alexandre Giesbrecht | Twitter | 2 de maio de 2018

O goleiro Ignác Amsel chegou ao Ferencváros, da Hungria, em 1922, aos 23 anos de idade. Defendeu o clube até 1933, a não ser por um período de dois anos em que passou pela Anconitana, da Itália, entre 1925 e 1927. Com o “Fradi”, conquistou os Campeonatos Húngaros de 1926–27, 1927–28 e o lendário 1931–32, quando o clube venceu todos os 22 jogos do torneio. O clube também levou a Copa da Hungria com Amsel em 1926–27, 1927–28 e 1932–33.

Seu histórico na seleção húngara não foi dos melhores, tendo saído vitorioso em apenas duas das nove partidas que disputou entre 1921 e 1931, quase todas amistosas. Apesar disso, ele é marcado por ter sido o primeiro goleiro da seleção de seu país a defender um pênalti, contra a Áustria, em 1923 (a Hungria perdeu o jogo por 1 a 0).

Amsel ganhou alguma fama no Brasil na virada da década de 1930, quando o Ferencváros veio à América do Sul para duas excursões, em 1929 e em 1931. Na segunda delas, o “Fradi” perdeu por apenas 2 a 1 para a seleção uruguaia, campeã do mundo no ano anterior, em Montevidéu, mas também sofreu um revés de 6 a 1 para um Combinado Rio–São Paulo, que hoje é aceito como seleção brasileira.

O goleiro Ignác Amsel em ação, contra o Uruguai, na excursão de 1929 do Ferencváros. Foto: acervo do blog Before the ‘D’.

A partir de 1933, quando deixou o Ferencváros, não consegui determinar o que ocorreu com a carreira de Amsel. Segundo o verbete em italiano sobre o goleiro, ele teria defendido o Kispest Honvéd na temporada de 1933–34, informação que não é corroborada pelo verbete em húngaro, que não cita nenhum outro clube após a saída do “Fradi”. Em uma entrevista à Folha da Manhã em 1939, ele afirmou que, “após quinze anos de atividades no maior clube da Hungria, [aceitou] uma proposta do Ancona, da Itália, no qual acumulava as funções de treinador e arqueiro”.

Como ele mesmo afirmou nessa entrevista que a passagem por Ancona durou dois anos, é possível que ele, o intérprete ou o jornalista que redigiu a matéria tenha se confundido com a passagem anterior pelo clube italiano, apesar de soar estranha a informação de ele ter sido também técnico, além de goleiro. Na lista de treinadores do verbete do clube na Wikipédia em italiano, constam três treinadores húngaros entre 1923 e 1939, nenhum deles Amsel, porém há períodos em branco entre 1924 e 1933 e entre 1935 e 1936.

Em 1936–37, o clube conquistou seu grupo na Série C, classificando-se para a Série B, mas o técnico era o também húngaro György Kőszegy. Na entrevista à Folha, Amsel mencionou que conseguira “levantar um campeonato da série regional a que esse clube [pertencia]”. “Depois de dois anos [em Ancona]”, prosseguiu, “retornei a Budapeste, voltando ao meu conjunto de origem, desta vez, porém, na qualidade de treinador.”

Nenhum dos verbetes sobre o jogador na Wikipédia menciona a carreira dele como técnico, mas sabemos que ela existiu, justamente pelos acontecimentos que se seguiram à sua chegada ao Rio de Janeiro em 28 de fevereiro de 1939, no navio Oceania. Apesar de eu não ter encontrado nenhuma menção a respeito, é possível que ele tenha vindo ao Brasil para escapar da perseguição a judeus na Europa.

“Entre os passageiros do ‘Oceania’, ancorado na manhã de hoje na Guanabara, o famoso futeboler internacional [Ignác] Amsel chamou logo a atenção da reportagem”, dizia uma matéria de agência telegráfica publicada tanto em O Estado de S. Paulo como no Correio Paulistano e na Folha da Manhã, todos em suas edições de 1 de março. “Jovem ainda, aparentando no máximo 25 anos [N. do E.: Ele estava prestes a completar quarenta anos.], alto, louro, forte, o ex-guardião do Ferencváros, o quadro húngaro que nos visitou há anos, conversou amavelmente com os representantes dos jornais cariocas.”

Segundo essa mesma reportagem, Amsel teria vindo ao Brasil a convite do Paulistano, que estaria prestes a voltar a praticar o futebol profissional, gerando manchetes informando a volta do clube do Jardim América ao futebol profissional — lembro que ele foi, ao lado da Associação Atlética das Palmeiras, um dos clubes que deram origem ao São Paulo, em 1930. “Minha carreira esportiva é cheia de acidentes”, declarou o ex-jogador. “Já atuei em vinte matches internacionais, disputados em vários países da Europa e da América. Apesar da minha grande simpatia pelo Brasil, esta oportunidade que me ofereceu o Paulistano, na sua fase de reorganização, é a primeira que tenho de atuar em canchas brasileiras.”

Supõe-se que ele se referisse à sua primeira atuação no Brasil como técnico, já que ele jogara aqui durante as excursões com o Ferencváros, como na partida contra o Fluminense, em 1931. Já o nome do clube que o contratou pode ter sido uma confusão do treinador, que certamente não conhecia muito do futebol brasileiro, num tempo em que a Internet não era sequer um sonho das pessoas. A informação causou algum rebuliço entre os dirigentes do Paulistano, que pareciam não saber de nada.

Na Folha da Noite daquele 1 de março, um jornal vespertino, a informação já começou a ser corrigida, com a manchete da mesma nota de agência passando a conter no subtítulo “Notícias do Rio dizem que [Ignác] Amsel treinará o Paulistano”, mas abaixo de “Um treinador húngaro para o São Paulo” como manchete. Uma nota da redação, ao pé da matéria, explicava:

“Havíamos sido informados ontem de que o São Paulo esperava para muito breve um treinador húngaro, a quem confiaria o preparo técnico de seus quadros. O nosso informante adiantava, ainda, que o referido treinador permaneceria um mês incógnito em nossa capital, a fim de se aclimatar e fazer certas observações necessárias ao cumprimento de sua missão. Quer nos parecer, assim, que [Ignác] Amsel, a que se refere o telegrama acima, seja o treinador esperado pelo São Paulo. A indiscrição da reportagem não lhe permitiu, porém, o sigilo em torno de sua pessoa.”

Na edição de 2 de março, o Correio informou que “um diretor do São Paulo acentuou que a diretoria do Tricolor se reuniria para entrar em contato com Amsel”. Entretanto, o Estadão do mesmo dia já trazia uma matéria intitulada “O novo técnico do São Paulo F.C.”, fruto de uma visita de Amsel à redação do jornal. Ele também visitou a redação da Folha da Manhã, quando foi batida a foto que abre este texto e dada a entrevista citada alguns parágrafos acima.

Ele fora contratado pelo São Paulo ainda em dezembro de 1938, para substituir Vicente Feola. O Correio Paulistano explicou a mudança: “O atual técnico, sr. Feola, passará a ocupar a chefia da secretaria, cujas funções exerce, aliás, efetivamente, há muito tempo. A sobrecarga de serviço que pesa sobre esse dedicado auxiliar levou a diretoria tricolor a contratar os serviços de Amsel, pois que não podia prescindir dos préstimos de Feola na parte administrativa.”

Amsel seria “especialista no preparo de futebolistas para [o] futuro, sendo provável que, no São Paulo, organize uma turma de trinta jovens, destinada a defender, mais tarde, as cores do [clube]”. Na entrevista a’O Estado, ele afirmou estar satisfeito com a cidade e confiante de que faria um bom trabalho. Uma das primeiras medidas tomadas pelo Tricolor após a chegada do húngaro foi abrir inscrições para seus quadros juvenis, exigindo aos candidatos idade mínima de catorze anos e máxima de dezesseis. Os interessados deveriam comparecer à “praça de esportes” do São Paulo (o Estádio Antarctica Paulista), localizado no número 1.336 da Rua da Mooca.

Na já citada entrevista à Folha, ele foi questionado sobre se adotaria a tática europeia, que era bastante diferente da utilizada no Brasil. E respondeu: “Isso depende muito das instruções que receber dos diretores do São Paulo. Posso adiantar, entretanto, que o padrão usado na Europa dificilmente dará resultados aqui no Brasil. Dessa forma, vou estudar como é possível aproveitar o que de melhor existe no Velho Mundo e que possa ser adotado no Brasil. Certamente, a essa conclusão chegarei depois de acurada observação, não só do padrão de jogo dos meus futuros pupilos, como principalmente das suas possibilidades físicas e habilidade pessoal de cada um dos players do Tricolor.”

Amsel não assumiu o comando do time profissional logo de cara. “Fui contratado para treinador do São Paulo, mas não assumirei meu cargo imediatamente”, explicou, na entrevista à Folha. “O quadro continuará entregue a Feola até o fim do presente certame [o Campeonato Paulista de 1938, que ainda estava em disputa]. Durante esse tempo, acompanharei as atividades desse técnico.” Amsel acompanhou, por exemplo, a delegação na excursão ao Rio de Janeiro, já naquele mês.

Apesar de ter tido apenas um turno, o campeonato de 1938 só terminou em 25 de abril de 1939, com a famosa partida entre São Paulo e Corinthians interrompida dois dias antes com vitória são-paulina parcial e retomada com o empate corintiano com um gol em que Carlito dominou claramente com a mão antes de marcar. O empate deu o título ao rival.

Segundo o historiador do São Paulo, Michael Serra, Amsel assumiu o comando do time em 24 de maio, quatro dias antes da estreia tricolor no Campeonato Paulista de 1939, contra o Ypiranga. O noticiário esportivo da época era concentrado nos dias próximos aos jogos e nas edições imediatamente seguintes às rodadas, sem cobrir o dia a dia dos clubes. Para piorar, os técnicos eram praticamente ignorados nas matérias que saíam, e a mudança de comando não foi relatada por nenhum dos jornais pesquisados. Ele passou a ser o segundo treinador estrangeiro da ainda curta história do Tricolor, e também o segundo húngaro — Jenõ Medagyensky tinha sido o primeiro, entre 1932 e 1933, e Béla Guttmann seria o terceiro e até hoje último, entre 1957 e 1958 — além de ser o primeiro dos até hoje oito ex-goleiros a treinar o clube.

Sob o comando de Amsel, o São Paulo fez campanha apagada no Paulista de 1939. Após a quarta rodada do segundo turno, o Tricolor ocupava uma apagada oitava colocação entre os onze participantes. Em algum momento nas duas semanas seguintes, Amsel perdeu o cargo, tendo comandado o time pela última vez em 16 de setembro, na derrota por 1 a 0 para a Portuguesa — em que o time jogou surpreendentemente bem. O Estado de S. Paulo chegou a elogiar as últimas atuações do clube, exaltando não apenas os jogadores:

O São Paulo Futebol Clube, por exemplo, na sua peleja com a Associação Portuguesa de Esportes, travada no sábado último, causou a melhor das impressões, demonstrando que os reveses ultimamente sofridos não tiveram influência alguma desfavorável sobre a direção do clube, que continua estimulada por um entusiasmo sadio e que muito há de concorrer, por certo, para a melhoria do nível técnico-esportivo do nosso “association”. […] Pelos progressos já assinalados, não temos dúvidas em prever, para breve, um São Paulo diferente, em condições de animar, juntamente com Palestra Itália, Corinthians e outros clubes, as atividades futebolísticas paulistanas.

O momento exato da demissão não pôde ser determinado. Contei com a ajuda do historiador do São Paulo, Michael Serra, simplesmente para saber quais foram o primeiro e o último jogos com o técnico húngaro no comando. Curiosamente, o Estadão publicou, em 19 de setembro, uma nota sobre a mudança da sede social do São Paulo para o número 387 da Rua Dom José de Barros, mas ignorou completamente a saída de Amsel.

Segundo Serra, o jornal O Dia teria dito que o Tricolor estava sem técnico em 22 de setembro e já teria feito uma proposta para Amílcar Barbuy, que defendera Corinthians e Palestra Itália nos anos 1910 e 1920, assumir o comando. A três dias do jogo contra o Juventus, em 28 de setembro, o primeiro sem Amsel no comando, O Estado apenas citou que “o quadro tricolor […] agora parece estar melhorando”, sem explicar se era a evolução que já tinha sido apontada alguns dias antes ou se era fruto de uma eventual mudança de treinador que tivesse ocorrido. Dois dias depois, o mesmo jornal mencionou que o São Paulo continuava a sofrer “uma série infindável de remodelações” e, no dia seguinte, emendou: “Continuam as reformas sobre reformas, que alguns condenam e outros elogiam.” Quais as “reformas” e “remodelações”? O jornal não explica.

Quem foi o técnico até Barbuy chegar? Difícil dizer. Há fontes que mencionam Décio Pedroso, futuro presidente do clube nos anos 1940, como técnico nessas partidas, mas Serra crê que possa ter havido uma confusão entre o cargo de diretor esportivo, que ele ocupava, com o de diretor técnico, nome muito usado naquela época para o cargo de treinador (e que ainda é usado em vários países de língua espanhola). Outras fontes sugerem que o meia Ponziníbio pode ter comandado o time em um ou mais jogos, sem especificar qual ou quais.

O fato é que em novembro Barbuy já estava comandando o São Paulo, apesar de no mês anterior ele ter sido especulado como novo treinador do Fluminense, na edição de 22 de outubro d’O Estado. “O quadro do São Paulo Futebol Clube, que agora tem novo orientador técnico, está atuando com aquele antigo brilho, que fazia vibrar milhares de afeiçoados”, escreveu o mesmo periódico em 18 de novembro. Era Barbuy, apesar de ele não ter o nome citado.

E Amsel? Difícil dizer exatamente o que aconteceu com ele. Em fevereiro de 1941, o Jornal dos Sports, do Rio de Janeiro, publicou uma matéria com ele, em que é abordada sua passagem pelo São Paulo: “Amsel ingressou no Tricolor bandeirante, do qual se desligou por motivos alheios à sua vontade e por culpa da inesperada transformação política por que passou a popular instituição. Não permaneceu, a despeito disso, sem fazer nada, porque tinha uma profissão e possuía a situação regularizada no país.”

Agostinho, Amsel e Iracino, na segunda passagem do húngaro pelo São Paulo. Foto: cortesia Arquivo Histórico do São Paulo Futebol Clube.

Aparentemente, a profissão era comerciante, pois, na mesma matéria, ele explica que já estava radicado no Brasil, que tinha uma casa comercial na então capital federal e que estava trabalhando com jovens naquela cidade: “Não é necessário frisar que exerci, na Europa e no próprio Ferencváros, a profissão de treinador, de onde passei-me contratado pelo São Paulo. Uma vez atuando no Rio, preferi fazê-lo em contato com elementos novos, com os juvenis, os suplentes, em geral possuidores de caráteres mais facilmente amoldáveis. Não sou brasileiro, mas quero ser útil ao país que elegi de coração para minha segunda pátria. Quero e estou pronto, portanto, a trabalhar pela reconstrução do soccer brasileiro.”

Encontrei ainda uma única citação, também no Jornal dos Sports, em 1945, ao nome de Amsel como técnico do Atlético Mineiro — no caso, ele estaria sendo boicotado por dirigentes, que estariam interferindo em seu trabalho, revoltando os jogadores. Em fevereiro de 1947, ele estaria de volta ao São Paulo, onde treinou as equipes das categorias de base. Nos contratos que firmou com o clube, já assinava “Ignacio Amsel”. Ele deixou o Tricolor já em agosto daquele ano, apesar de o contrato ter validade até 1949. Não encontrei mais referências sobre o que fez até sua morte, no Rio de Janeiro, em 1974.

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Autor de três livros sobre a história do São Paulo. Pai, filho, neto e bisneto de são-paulinos.