Alexandre Giesbrecht
Jogos do São Paulo
9 min readFeb 24, 2015

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O ídolo argentino chegou para testes em 1953, jogou algumas partidas do Rio–São Paulo — nenhuma do início ao fim—, mas saiu sem fazer parte do timaço que ganharia o Campeonato Paulista

Por ALEXANDRE GIESBRECHT | Twitter | Facebook | Google+

Considerado um dos maiores ídolos da história do San Lorenzo, Rinaldo Martino formou, no clube, o “Terceto de Oro”, ao lado de Armando Farro e René Pontoni. Defendeu a seleção argentina em vinte partidas entre 1942 e 1946, período em que, com as Copas do Mundo interrompidas pela Segunda Guerra Mundial, não pôde brilhar num cenário mundial. Ainda assim, ganhou dois Campeonatos Sul-Americanos (atual Copa América) com a seleção alviceleste, em 1945 e 1946, tendo marcado o gol do título na primeira conquista. No total, anotou quinze tentos oara a Argentina.

Em 1949, deixou o San Lorenzo e transferiu-se para a Itália, onde foi campeão italiano com a Juventus na temporada de 1949–50. Naquela campanha, entrou em campo em 33 das 38 partidas da “Velha Senhora” e anotou dezoito gols. Com o sucesso, chegou até a defender a seleção italiana em uma partida: em 30 de novembro de 1949, participou da derrota por 2 a 0 para a Inglaterra, no estádio do Tottenham.

Em 1950, voltou à América do Sul, para defender o Nacional do Uruguai. No ano seguinte, voltou à Argentina, para o Boca Juniors, onde ficou apenas uma temporada (e ganhou uma capa da revista El Gráfico, reproduzida ao lado), voltando em seguida ao Nacional. Nas duas passagens pelos bolsos, ganhou títulos uruguaios. No início de 1953, Martino ganhou passe livre do Nacional e arriscou-se no Brasil, mais precisamente no São Paulo. Ele chegou para testes no Canindé (o São Paulo ainda era o Tricolor do Canindé) em 24 de março de 1953. Se agradasse durante o Torneio Rio–São Paulo, seria contratado em definitivo.

O time já contava com outros três estrangeiros, todos argentinos: o goleiro José Poy e os atacantes Gustavo Albella e Juan Jose Negri. Aos 31 anos (nasceu em 6 de outubro de 1921), Martino era considerado veterano: já em fevereiro, o jornal Mundo Esportivo destacou que o jogador fora “companheiro [do zagueiro Norberto] Méndez [outro jogador que interessava ao São Paulo], no Nacional, porém [era] muito mais velho que este”. E completou: “Veterano por veterano, por que não se tentou Ángel Labruna?” Labruna era ídolo no River Plate e três anos mais velho que Martino.

Em março, entretanto, o jornal parecia ter mudado de opinião: “Apesar da idade (mais de trinta anos), possui experiência e reais qualidades de bom futebolista.” Em sua edição seguinte, o periódico publicou uma matéria contando um pouco da carreira do jogador, sob o título “Vale a pena Martino?”. Eis a conclusão da reportagem:

“Sastre, acreditamos, tinha quase a mesma idade (ou mais) quando veio a defender as cores do São Paulo. E também constituiu-se em uma figura de primeira plana naquela época de reerguimento do São Paulo, que foi conseguida totalmente, sendo ‘El Maestro’ um de seus organizadores mais completos. Portanto, poderia também Martino ser de grande serventia para o grêmio das três cores. Tem grandes qualidades técnicas. Brilhou em todos os clubes por que passou. Embora veterano, ainda poderá ser de grande utilidade para o São Paulo. Esperemos, porém.”

Outro questionamento veio da Folha da Manhã, que lamentava que as contratações de “medalhões” estrangeiros, como Martino e Gustavo Albella, supostamente fossem às custas das chances dadas a jovens promessas nacionais, como Gino Orlando (ainda em início de carreira) e Lanzoninho. “Só porque tem o nome mais bonito e custa mais caro”, opinou o jornal. “Gino, porém, não tem direito a esse tratamento. Quem lhe mandou ser craque nacional? Tem que provar que é bom logo na primeira chance, porque não haverá outras chances para ele.” Como veremos adiante, não era bem assim que as coisas funcionavam.

Martino estreou no dia 5 de abril, em um amistoso contra o Guarani, em Campinas, que serviu como despedida do Estádio Pastinho, na Rua Barão Geraldo, inaugurado em 1923 e que agora daria lugar ao Brinco de Ouro. O Pastinho havia sido inaugurado em um confronto contra o Paulistano, então fazia sentido trazer o São Paulo, sucessor daquele clube, para a despedida. A partida terminou empatada por 1 a 1, mas, apesar da grande expectativa por sua estreia, Martino demonstrou estar com mau preparo físico. O argentino foi substituído por Gino Orlando, que marcaria o gol de empate no último minuto de jogo.

“Nem oito nem oitenta”, escreveu a Folha da Noite. “O que se viu foi Martino relegado para segundo plano, devido à sua atuação discreta.” O adjetivo foi repetido pela Folha da Manhã, mas a análise foi um pouco mais incisiva: “Nada de positivo pode ser dito com relação a seu trabalho, já que, a despeito de mostrar algumas qualidades, sua produção foi apenas discreta.” O Mundo Esportivo detalhou um pouco mais: “Na meia, Martino carregava muito bem a bola, porém não lograva atirar à meta com perigo e ressentiu-se de melhor preparo físico. Trata-se de um bom valor, porém necessitando de melhor aclimatação.”

Dois dias depois, entretanto, o mesmo jornal deu a entender que o texto anterior era um eufemismo: “[Martino] está gordo, pesado, ‘sem pernas’.” E, após mais cinco dias, encaixou-o na seção “Doa a quem doer! Nem todas as verdades podem ser ditas, mas há algumas que todos devem saber”. E o texto não perdoou o argentino: “É o homem dos ‘onze anos depois’. Sim, porque em 1942 Martino já era grande [e] passou em 1945 e 1946 ainda como grande. Mas os músculos vão cansando, as varizes, aparecendo e… o futebol, acabando. Entre 1942 e 1953, a diferença é muito grande. E um jogo ainda tem noventa minutos.”

O São Paulo submeteu Martino a um programa para ele entrar em forma, sob a supervisão do preparador físico Ariston. Os exercícios eram pesados, mas apresentaram resultados, com o atleta perdendo três quilos em cerca de duas semanas. Martino voltaria a ter uma chance entre os titulares no dia 25, contra o Botafogo, terceiro jogo do time no Rio–São Paulo daquele ano. A entrada do argentino no time titular chegou a ser criticada, após a boa atuação do ataque na vitória por 3 a 1 sobre o Corinthians, pela segunda rodada, mas isso não impediu sua escalação.

Àquela altura, os dirigentes já garantiam que ele tinha readquirido a forma física, e ele formou o ataque com Lanzoninho, Gino Orlando, Ranulfo e Teixeirinha. Negri deixaria o time, enquanto Gino seria deslocado para a meia direita. O Tricolor venceu por 3 a 1, gols de Gino, Ranulfo e Teixeirinha. Cansado, Martino acabou substituído por Negri. Desta vez, sua atuação foi considerada ótima pelo jornal O Estado de S. Paulo. Já a Folha da Noite foi mais contida: “O argentino saiu-se regularmente, tendo momentos de destaque.” (Curiosidade: nessa reportagem, o jornal chama o lateral Nílton Santos de “Newton Santos”.)

Naquela semana, o Mundo Esportivo escreveu nova reportagem sobre o aproveitamento de Martino, em que analisou as possibilidades táticas de sua escalação:

Tecnicamente, Martino é uma garantia. […] Martino deveria jogar sempre na frente empregando aquele sistema que já vimos tão perigoso, de passes curtos, envolvimentos rápidos, o “toma-lá-dá-cá” dos homens de área, armando-se mutuamente. Se for bem explorado no São Paulo, Martino, mesmo na veteranice, tem possibilidades, aguentará o ano de 1953 como um de seus astros. […] Dos dois meias do São paulo, nenhum fica na frente, a ajudar o centro. E, além disso, ainda temos notado que Ranulfo se perde demais dentro do seu próprio campo, a se confundir entre os médios e até entre os zagueiros. Ora, esse papel de um meia é interessante quando se trata de ajudar uma defesa deficiente. Mas a retaguarda são-paulina sempre se mostrou grande. […] Logicamente, então, o São Paulo, em vez de recuar os dois meias — um dos quais Ranulfo — a tal ponto, deveria manter os dois na frente. […] Para o aproveitamento total de Martino, fiquem certos os tricolores que terão agora de aceitar uma imposição ocasional advinda da condição física do elemento. […] Armar Gino, especialmente, será sua maior tarefa. Sua habilidade extraordinária no soltar a bola, seu gosto pelo jogo de primeira, de um lado, e sua condição física vacilante, de outro, apontam para esse sistema. O São Paulo poderá tirar-lhe o máximo ou perdê-lo, se lhe der uma função larga, de ir e vir, como o argentino diz que está acostumado, só que a executava quando era moço. Explorar a técnica em detrimento do emprego físico: essa será a medida mais aconselhável para [o técnico] Vicente Feola.

Na partida seguinte, o Vasco da Gama superou o São Paulo por 1 a 0, no Maracanã, e tomou-lhe a liderança do torneio. Apesar de ter treinado entre os titulares naquela semana, com direito a dois gols num coletivo contra os reservas que terminou com vitória por 5 a 2, Martino começou a partida no banco e substituiu Gino Orlando. Sua melhor participação no jogo foi um belo passe para chute de Ranulfo na pequena área, que acabou defendido pelo goleiro Barbosa.

Uma contusão que o deixou de molho por alguns dias fez com que ele não entrasse em campo nas vitórias sobre Fluminense e Santos, respectivamente nos dias 10 e 17. Recuperado, voltou a campo no dia 25, contra o Bangu, no Maracanã. E foi nessa partida que marcou seu único gol com a camisa são-paulina. O São Paulo acabou derrotado por 3 a 1, em uma grande atuação do então banguense Zizinho — o mesmo que seria um dos grandes responsáveis pelo título paulista do Tricolor, em 1957. O argentino tinha entrado no lugar de Negri, no intervalo, e seu gol foi descrito assim pelo Estadão: “Aos 23 minutos, o São Paulo obteve seu ponto, por intermédio de Martino, numa bola sem nenhum perigo para o arco; Fernando cochilou no lance.” A Folha da Noite fez coro à falha do goleiro do Bangu, em um relato mais detalhado:

“O gol do São Paulo foi marcado […] de forma surpreendente. Lanzoninho, lutando com Salvador, forçou-o a conceder lateral. Maurinho cobrou para Bauer, que, após algumas escaramuças, devolveu a Maurinho. Este, incontinente, centrou para dentro da área banguense, onde, de primeira, Martino alvejou a meta. No entanto, o tiro longo e alto deu a todos a impressão de que seria facilmente defendido por Fernando. Este, porém, contra a expectativa geral, ficou parado no centro do arco, enquanto a bola calmamente ganhava o fundo de suas redes.”

Diante do Flamengo, no dia 31, era esperado que Martino substituísse o contundido Gino. Entretanto, foi Lanza quem ficou com a vaga. O ataque são-paulino estava muito mal, e o técnico Vicente Feola optou por colocar Martino no lugar de Lanza, no segundo tempo. Não deu certo, e o time continuou sem funcionar do meio-de-campo para a frente. Martino acabou sendo substituído por Bernardi, que “era o menos indicado para uma partida como a que se estava desenrolando”, segundo a Folha da Noite. Feola tentou explicar sua decisão: “Esperava que Martino se adaptasse bem ao terreno escorregadio, mas não foi feliz, e, em virtude disso, fui obrigado a colocar Bernardi na esquerda.”

Essa curta atuação acabaria por ser a última das cinco de Martino pelo São Paulo, nenhuma delas pelos noventa minutos. Ele não participou do jogo contra a Portuguesa, pela última rodada do Rio–São Paulo, e, em 6 de junho, seguiu para Buenos Aires. Seu contrato com o Tricolor previa sua participação apenas no Rio–São Paulo. O clube agora teria pela frente o Torneio Rivadávia Meyer, octogonal amistoso disputado no Pacaembu, e, depois, o Campeonato Paulista. Feola pediu demissão, sendo substituído pelo técnico argentino Jim Lopes, que estava no Ypiranga. Lopes comandaria o São Paulo em um de seus títulos mais convincentes, o estadual daquele ano: foram 24 vitórias em 28 jogos.

Martino, por sua vez, acabaria voltando ao Uruguai ainda naquele ano, desta vez para defender o Cerro. Foram apenas quatro jogos (com um gol) defendendo os villeros, e ele resolveu aposentar-se. Na década seguinte, foi um dos fundadores do Caño 14, uma das mais tradicionais casas de tango argentinas. Martino morreu em 15 de novembro de 2000.

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Autor de três livros sobre a história do São Paulo. Pai, filho, neto e bisneto de são-paulinos.