São Paulo e Corinthians disputam a bola no primeiro tempo. Essa cena seria mais rara na segunda etapa. Foto: Diário Popular.

Dezoito minutos com o Corinthians na roda?

Em 1944, o São Paulo goleava o Corinthians e, com o placar já estabelecido, tocava a bola para delírio da torcida, diante de um adversário praticamente indiferente. Mas por quanto tempo isso teria durado?

Alexandre Giesbrecht
Jogos do São Paulo
6 min readOct 15, 2020

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O Majestoso da última rodada do Campeonato Paulista de 1944 serviria apenas para definir se o vice-campeão seria o São Paulo ou o Corinthians. Com um ponto a mais, o Alvinegro precisava apenas de um empate para garantir essa colocação, que tinha algum valor naquela época. “Foi-se o título principal, mas ficou o secundário”, na descrição d’A Gazeta Esportiva. “Acreditava-se que o jogo seria dos melhores, uma vez que os adversários eram clubes dos mais categorizados”, escreveu a Folha da Manhã. “Os prognósticos não indicavam nenhum favorito, reconhecendo igualdade de possibilidades.”

Mas não apenas a vitória foi do São Paulo, como ela veio com uma goleada, como informava o Estadão: “Por quatro vezes a pelota foi ter às malhas da cidadela de Rato, ao passo que a meta de King permaneceu inviolável.” Aliás, para o Correio Paulistano, o favoritismo era do Corinthians, o que tinha tornado o resultado “uma autêntica surpresa”: “A partida, em linhas gerais, não correspondeu à expectativa. Foi, antes, uma autêntica surpresa preparada pelos rapazes do São Paulo, os quais, a despeito da menor cotação que mereciam no aludido cotejo, conseguiram arrancar uma vitória insofismável sobre o antagonista, dando-lhe maior expressão com a exibição de um futebol de boa qualidade e estonteante nos quinze minutos finais do embate.”

Apesar de ser a primeira goleada sofrida pelo Corinthians no Campeonato Paulista em onze anos, esta seria apenas mais uma das goleadas registradas nos confrontos entre São Paulo e Corinthians, se não fosse por um detalhe que descobri por acaso. O semanário Mundo Esportivo, que circulou em São Paulo entre as décadas de 1940 e 1950, possuía uma seção chamada “Página dos consulentes”, em que leitores escreviam ao jornal com perguntas, que eram respondidas em uma publicação posterior. A edição de 26 de setembro de 1952 publicou duas respostas ao leitor Otávio S. Souza, da Capital. Não era praxe do jornal publicar as perguntas, mas a segunda das respostas trazia uma curiosidade interessante: “Foi no returno de 1944 que o Corinthians ficou dezoito minutos sem pegar na bola durante um jogo contra o São Paulo.”

Como o jogo do segundo turno do campeonato de 1944 foi justamente aquele 4 a 0 citado no primeiro parágrafo, decidi pesquisar o que os jornais da época teriam falado sobre isso. E, se nenhum deles mencionou dezoito minutos sem os jogadores corintianos tocarem na bola, há algumas evidências de que talvez o Mundo Esportivo não tenha exagerado.

A Folha da Manhã trouxe este trecho: “O São Paulo […] conseguiu atuar com grande acerto, terminando com uma verdadeira exibição de ‘academismo’. Relembrou as atuações do onze do ano passado. Na fase final da partida, o Corinthians desanimou, deixando de lutar por um resultado mais favorável. O São Paulo, porém, não ficou nos dois tentos iniciais, conseguindo vazar mais duas vezes a meta de Rato. Então, com a vitória assegurada, passou a jogar para a assistência, fintando, organizando passes, controlando o balão com maestria. Como dissemos, uma verdadeira exibição de ‘academia’.”

Em outro ponto, o mesmo jornal fala do que ocorreu após o terceiro gol, e teria sido aí a “exibição de academismo” anteriormente mencionada: “Depois deste ponto, o Corinthians entrega-se completamente. O São Paulo então pôs em jogo todo o seu virtuosismo, apresentando uma série de combinações. O quadro passa a jogar para a assistência, procurando fazer uma exibição de ‘academia’.”

O terceiro gol, entretanto, foi aos 24 minutos, enquanto o quarto viria aos 34 ou aos 36, dependendo da fonte. Se foi nesse período que o Corinthians deixou de conseguir roubar a bola, não teria chegado nem perto dos dezoito minutos mencionados na pesquisa do Mundo Esportivo — obviamente, logo em seguida ao quarto gol, a posse de bola passaria aos alvinegros.

Já os relatos d’O Estado de S. Paulo, do Diário Popular, do Correio Paulistano e d’A Gazeta Esportiva falam que o tal “desfile” teria sido nos quinze minutos finais. O trecho publicado pelo Correio é o que fecha o segundo parágrafo, mais acima, enquanto A Gazeta Esportiva resumiu desta maneira: “A ofensiva tricolor obriga o Corinthians a capitular por 4 a 0, além de jogar os quinze minutos finais academicamente!”

Após descrever o terceiro gol, o Correio prosseguiu sua narrativa assim: “Já se acentuava, então, plenamente, o domínio do São Paulo. A defesa contrária viu-se forçada a recuar mais ainda, e o ataque, destituído da menor compreensão quando conseguia burlar a vigilância da defensiva tricolor, disso não tirava o mínimo proveito. […] A pressão são-paulina tornava-se cada vez mais intensa. Seus jogadores, já aos vinte minutos da segunda fase da luta, passaram a cultivar um futebol ‘acadêmico’, como se diz comumente. A situação para os alvinegros estava irremediavelmente perdida.”

O jornal também falou sobre os minutos finais, já depois do quarto gol: “O Tricolor, nesses minutos finais, agia com inteira segurança de si, ao passo que o antagonista, cada vez mais desorientado, acabou por se convencer da inutilidade de qualquer ação contra a cidadela tricolor, fortemente defendida.”

A crônica do Estadão delimitou assim o período de maior domínio tricolor: “No último quarto de hora, o predomínio são-paulino foi mais nítido, fazendo ‘jogo de arquibancada’. A bola foi trocada pelos jogadores são-paulinos com uma segurança desnorteante, ante os adversários que, conformados com o revés, não procuravam disputar a esfera.”

O Diário Popular trouxe um texto quase idêntico ao do Estadão, embora com alguns trechos a mais (não acredito que o Estadão teria copiado o texto do concorrente, que saiu um dia antes; pode ser que houvesse alguma parceria entre os jornais), e acrescentou algumas palavras, prosseguindo depois com a última frase idêntica à do outro jornal: “No último quarto de hora, o predomínio são-paulino foi tão nítido, que a turma preferiu optar pelo classicismo que o público chama pitorescamente de ‘baile’.”

Mas foi A Gazeta Esportiva, mesmo, que falou mais sobre isso, até por ter dedicado o maior espaço ao jogo. O jornal, ainda a três anos de se tornar diário, já fazia uma grande cobertura das rodadas em suas edições de segunda-feira. O texto a respeito do jogo, assinado pelo lendário jornalista Thomaz Mazzoni, destacou a “impressão final” deixada pelo São Paulo, mas também situou o desânimo corintiano a partir do terceiro gol, embora sem deixar de destacar sinais desse desânimo antes disso.

[A impressão final] vai, em grande parte, devido ao completo desfibramento do Corinthians, desfibramento que começou desde quando malogrou nas suas tentativas de responder com êxito ao [placar de] 2 a 0, já em pleno segundo tempo”, descreveu o periódico. “[…] O terceiro gol do São Paulo precipitou tudo. A partida se transformou numa festa do Tricolor no campo contrário! Se os craques são-paulinos têm a mania de pensar em exibicionismos quando estão vencendo por 1 a 0 apenas, façam ideia se estão vencendo por 4 a 0 e o adversário assume atitude impassível! O Corinthians, invadido pelo desânimo, entregue à fatalidade da derrota, deixou o adversário fazer o que bem quis. Aliás, diremos que desde o início do jogo não foi das melhores a disposição dos corintianos […]. O 4 a 0 foi atingido, e, mais do que isso, aqueles quinze minutos finais proporcionaram ao público uma exibição de circo.”

Essa “exibição de circo” ganharia mais algumas linhas no fim do texto de Mazzoni: “Desde aí [o quarto gol], descansa completamente o campo tricolor, enquanto que o Corinthians naufraga de vez e fica à mercê das ondas avassaladoras da ofensiva oposta. O São Paulo limita-se a deleitar sua torcida, que esquece de pedir mais gols, em troca daquela pirotecnia que é o jogo dos vencedores. O contraste final entre os dois quadros é chocante, e não poderia haver melhor apoteoso para os vencedores a justificar plenamente o 4 a 0 da partida. O fim é totalmente de [palavra ilegível] tricolor.”

Ao falar das atuações dos jogadores corintianos, A Gazeta Esportiva só pôde destacar positivamente a esportividade. Afinal, hoje em dia teríamos um festival de faltas duras e possivelmente até brigas em uma situação parecida: “Temos apenas a pôr em evidência a correção, o espírito de disciplina e de esportividade como souberam perder. Foi esta a melhor qualidade que tiveram na sua precária jornada conclusiva do certame de 1944. Sob outros aspectos, a conduta do Alvipreto esteve de acordo com o 4 a 0…”

Não há como saber se o Mundo Esportivo tirou a informação de algum outro jornal que talvez não esteja facilmente disponível hoje em dia ou se a pessoa que respondeu a pergunta do leitor Otávio simplesmente se lembrava disso. Ainda que não tenham sido dezoito minutos e ainda que o Corinthians efetivamente tenha tocado na bola, nem que fosse para dar a saída no meio de campo, o feito alcançado pelo São Paulo naquela tarde de 1944 segue tão impressionante hoje como parecia oito anos depois.

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Autor de três livros sobre a história do São Paulo. Pai, filho, neto e bisneto de são-paulinos.